Não precisou ter uma noite de sonhos inquietantes, o pesadelo estava vivo. Poderia dividir a vida em duas partes extremamente opostas: Viajar e viver. Corria desordenadamente em busca de seus pertences que se encontravam dispersos por toda a casa, havia poucas horas para organizar tudo que era de cunho material. De cunho material. A consciência, quem poderia organizar? Colocou tudo que podia numa mala preta, sua caixa de pandora particular. Faltava então muito pouco para partir. A euforia percorria seu corpo, já com certa intimidade, surgia ali um pouco de alívio também, deixaria aquela cidade e os tormentos que nela se encontrava, ia de encontro agora a novos relevos para apaziguar a alma. Aprendera muito bem quando estudara a escola literária romântica sobre o escapismo, desde então se tornou sua palavra mais do que predileta, não havia de ser coincidência.
A vida andara sendo muito cruel, e tentava ao seu máximo agarrar-se a fagulhinhas de fé que surgiam dentro de si, mas não haveria de ser fácil. A única certeza que tinha, que ainda lhe acalmava, era de que a cada dor maior, mais perseverante ficava. Repetia o monólogo interno:
– É preciso deixar ir, é preciso deixar ir. Viver e deixar morrer.
Chegou ao seu destino, finalmente. Reverberou, reverberou enquanto via a lua subir ao ponto mais alto do céu fluminense, refletindo sua luz nas águas daquela baía. Paz reinara em sua mente, estava tudo calmo. Um amigo, parido da mesma terra que outrora havia lhe parido também, a interrompera. Trazia nas mãos uma garrafa de vinho, na boca um sorriso de embriaguez. Sentou-se ao seu lado e as vozes iniciaram uma conversação:
Ele: É como se ainda estivéssemos aprisionados na caverna, julgando as coisas só pela sombra.
Ela: Platão esteve certo o tempo todo.
Ele: Às vezes é angustiante isso, mas talvez ‘A Caverna’, estar preso na escuridão, não seja de todo ruim. Talvez se nós soubéssemos tudo, visemos às coisas como realmente são em sua claridade e não em sombras, não saberíamos apreciar o que nós temos.
Ela: Eu só anseio a liberdade.
Muito longe de casa, a água e o vinho, a presença do ombro amigo avisava que no mundo, havia outros que também sofriam. Vinha o silêncio, vinha o vento. Traziam a sensação de deriva. Já era hora de viajar, outros cais precisavam lhe receber. Deixou na areia tudo que a aprisionara até então.